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AS REGRAS QUE NINGUÉM CONTA: Minha jornada através da obra "A Reprodução" de Bourdieu

Você já teve a sensação de que na escola, na faculdade ou na vida profissional existia um jogo com regras que ninguém se deu ao trabalho de te ensinar? Eu já. E foi neste livro que encontrei o manual de instruções desse jogo oculto.

AS REGRAS QUE NINGUÉM CONTA: Minha jornada através da obra "A Reprodução" de Bourdieu

E aí, Cafeinados!

Hoje quero compartilhar com vocês a experiência de decodificar um dos livros mais impactantes e, por vezes, áridos que já estudei: "A Reprodução", de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron.

Você já teve a sensação de que na escola, na faculdade ou na vida profissional existia um jogo com regras que ninguém se deu ao trabalho de te ensinar? Eu já. E foi neste livro que encontrei o manual de instruções desse jogo oculto.

Para mim, Bourdieu não é apenas teoria; é quase uma biografia. E para te mostrar como, preciso te contar um pouco da minha história.

O capital que não se compra, mas se herda
Fui criada por uma mãe professora, uma defensora apaixonada dos livros. Em casa, apesar do dinheiro contado, a estante era farta. Herdei dela o hábito de mergulhar nas páginas no meu tempo livre. Sem que eu soubesse, ainda criança, eu estava acumulando aquilo que Bourdieu chama de capital cultural: um conjunto de conhecimentos, habilidades e gostos que herdamos da nossa família e do ambiente em que vivemos.

O verdadeiro choque veio aos cinco anos. Graças a uma bolsa parcial, fui transferida de uma humilde escola municipal para um colégio particular. Ali, as paredes invisíveis começaram a se erguer. As conversas, as brincadeiras, os referenciais... tudo era diferente. Eu frequentava a mesma sala de aula, mas um abismo social e cultural me separava dos meus colegas. Essa barreira, que eu sentia sem saber nomear, era a mais pura manifestação da desigualdade de capitais.

Meu refúgio? A biblioteca. Fui acolhida pela inesquecível Irmã Julia Sendeski (in memoriam), a simpática e ágil bibliotecária que logo percebeu minha fome de leitura. Com o tempo, ganhei regalias, como o acesso a livros restritos. Aquele espaço se tornou meu porto seguro, o lugar onde eu podia, por conta própria, construir meu capital.

Essa jornada continuou: as deficiências da escola pública, o desafio de entrar numa universidade pública, o preconceito com as cotas raciais, até chegar aos cargos de gestão em grandes universidades privadas. Em cada etapa, eu via ao vivo o que Bourdieu e Passeron descreveram: como o sistema educacional, sob um véu de meritocracia, acaba por reproduzir as desigualdades que existem fora dele.

As "Chaves do Castelo": O Kit de Ferramentas de Bourdieu
Para entender esse jogo, Bourdieu nos entrega algumas "chaves", conceitos fundamentais que abrem as portas da sua teoria. As principais são:

Campo: Pense em um miniuniverso com suas próprias regras e disputas de poder, como o campo acadêmico, o artístico ou o político. Em cada campo, agentes disputam posições e legitimidade.

Habitus: É como o nosso "software" interno, um conjunto de disposições que adquirimos ao longo da vida e que molda nossas ações, gostos e pensamentos de forma quase automática. Ele é o produto da nossa história, mas também guia nossas escolhas futuras.

Capital: A grande moeda de troca nos campos sociais. Bourdieu divide em quatro tipos, mas o Capital Cultural é a estrela de "A Reprodução":

Incorporado: O conhecimento que está em nós (saber uma língua, tocar um instrumento). Leva tempo e esforço para adquirir.

Objetivado: A posse de bens culturais (livros, quadros, discos). Ter a posse não garante o aproveitamento; é preciso ter o capital incorporado para decodificá-los.

Institucionalizado: Os diplomas e certificados que validam nosso conhecimento perante a sociedade, convertendo nosso capital cultural em status e, muitas vezes, em capital econômico.

Juntos, esses conceitos explicam como a escola, ao valorizar um tipo específico de capital cultural (o da elite), acaba por validar quem já o possui e marginalizar os demais, num processo sutil e poderoso de violência simbólica.

Mas então, estamos presos? Uma crítica necessária
Se a teoria de Bourdieu fosse uma sentença final, nem eu nem o próprio autor – que veio de uma família humilde no interior da França para se tornar um dos maiores intelectuais do século XX – teríamos chegado onde chegamos.

A trajetória dele, assim como a de tantos outros, é a prova de que a estrutura social, embora poderosa, não é um destino inescapável. Reconhecer as regras do jogo não é se render a elas, mas sim o primeiro passo para aprender a jogá-lo – e, quem sabe, para começar a mudá-las.

Um café amargo, mas essencial
Ler "A Reprodução" é como tomar um café bem forte e amargo: ele te acorda para uma realidade desconfortável. Mas é um despertar necessário. Compreender as forças que moldam nosso sistema educacional é a única forma de lutar contra o fatalismo e de usar o conhecimento como uma ferramenta de transformação.

Afinal, o objetivo de entender as paredes invisíveis é, um dia, sermos capazes de derrubá-las.

E você, Cafeinado? Já sentiu essas barreiras na sua trajetória?

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